segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Durkheim e a importância de fazer listas


Li hoje na Folha de ontem um interessante texto, que reproduzo abaixo, de autoria do escritor argentino Alan Pauls.

Ele aborda a importância de se fazer listas num mundo em que tanto desejos como objetos de desejo parecem ilimitados. Para ele, a lista cumpre o papel de "colocar certa ordem nos desejos", nos impedindo de "naufragar no mundo".

Concordo. E, antes do término da leitura, tenho de confessar que me vieram à mente alguns dos ensinamentos de Émile Durkheim, um dos fundadores da Sociologia.

Caso eu tivesse mais tempo, retomaria até algumas leituras, para poder fazer uma análise sociológica mais precisa. Como não tenho, serei breve: não há como não ligar essa questão das listas com a preocupação de Durkheim com o estado de anomia pelo qual passava (ou ainda passa) a sociedade.

Grosso modo, a anomia seria o estado caracterizado pela ausência de normas, onde não há uma moral total compartilhada pelo conjunto dos indívíduos que os limite em seus desejos e que sirva como referencial para a "listagem" desses desejos.

Sem essa moral, afrouxa-se a coesão social, e os indívíduos creem-se autossuficientes com relação à sociedade da qual fazem parte e sem a qual nada são.

A partir daí, a busca incessante por mais e mais leva os indivíduos a um estado de insatisfação crônica e ao afastamento dos demais. O resultado? Pode ser o suicídio anômico, do qual Durkheim trata em seu clássico O suicídio.

***

Fazer listas é colocar ordem nos desejos

Fazemos listas desde sempre, desde antes de escrever. Nenhum garoto precisa conhecer o alfabeto ou as regras de concordância para enumerar o que quer em seu aniversário.

Basta ele desejar e compreender que algo tão despótico quanto o desejo requer algum tipo de lógica. É essa a função da lista: colocar certa ordem no desejo. Uma ordem básica, simples, rudimentar, mas absolutamente decisiva. Porque, sem ela, o garoto (ou seja: nós) se perderia. Ficaria à mercê de duas imensidões oceânicas: a do seu próprio desejo (por definição ilimitado) e a de tudo o que o mundo tem para lhe oferecer.

Elementar e ao mesmo tempo milagrosa, a lista é a primeira maneira que temos de não naufragar no mundo e de não aceitá-lo como ele é. Serve para recortar o mundo, capturá-lo, deixar uma marca que fale de nós nele.

Em sua meia língua, o menino que faz aniversário pede: “Um triciclo, um Woody, um chiclete, uma bola, um dragão que cospe fogo”. Essa lista impessoal é o mais pessoal que existe, porque é a intersecção entre seu desejo e o repertório interminável de presentes que espreitam no mundo.

Não é por nada que vivemos fazendo listas. Listas de compras, de convidados, de trabalhos a cobrar, de dias de prisão que faltam ser cumpridos, de filmes a ver, de livros para as férias, de amigos com os quais gostaríamos de tomar um drinque. Nesse gênero seco, mecânico, burocrático, há uma humanidade que comove.

A lista dá voz e forma ao que há, ao que se necessita, o que se ambiciona, o que se realizou, e, nesse sentido, parece condensar quatro ou cinco núcleos de experiência nos quais a espécie toda poderia se reconhecer: desejo, memória, registro, necessidade, sonho.

PAIXÃO

Com seu estilo desafetado, monótono, de repartição pública, a lista com frequência é o testemunho mais precoce e categórico de uma paixão.

O crítico de cinema Serge Daney dizia que o verdadeiro cinéfilo não é apenas aquele que vai muito ao cinema, desenvolve gostos sofisticados e é capaz de alçar-se em armas em nome de um diretor -é sobretudo aquele que passa a experiência do cinema para a experiência da lista: aquele que não para de sistematizar sua pulsão de fã em rankings e outras práticas nas quais confluem o ardor da paixão e a rotina contável.
A suntuosa espetaculosidade do filme de Spielberg (“A Lista de Schindler”) não nos fará esquecer o que a lista de Oskar Schindler foi, o que descobriram aqueles que a encontraram na mala que, em 1974, quando Schindler morreu, reunia o que restava da sua fortuna: uma folha com 1.200 nomes escritos.

TUDO E NADA

Ou seja, um arquivo: algo que é tudo e nada ao mesmo tempo. Como é tudo e nada ao mesmo tempo a lista de desaparecidos apresentada há dois meses por uma testemunha em Tucumán, Argentina, durante o julgamento de dois dos responsáveis pela repressão ilegal movida sob a ditadura de 1976-83.

São nove páginas de tamanho ofício escritas a máquina, com os nomes de 293 pessoas. Ao lado de 195 se leem as iniciais DF (disposição final), um eufemismo para dar nome ao crime. A lista não é nada: não diz quem eram, o que faziam ou porque nunca voltaram a ser nem a fazer o que eram e faziam antes de os terem inscrito nessa folha.

Mas é tudo, porque é o primeiro dado oficial das técnicas repressoras que aparece em quase 30 anos, o primeiro que -produzido pelos próprios militares, com suas máquinas de escrever- comprova que a repressão foi sistemática e metódica. A tal ponto que, como uma inversão macabra das listas apaixonadas do cinéfilo, os exterminadores não puderam resistir à tentação de registrá-la em uma lista.

ALAN PAULS, escritor argentino, é autor de O Passado (Cosac Naify), entre outros.

Tradução de CLARA ALLAIN.

4 comentários:

  1. Bom dia, Max!!!

    Estou aqui para além de parabenizar o conteúdo, lhe fazer algumas perguntas e solicitar alguma ajuda, se possível...

    Então, soube que você faz parte do PSOL, na verdade pelo Márcio, por ele mencionar uma "insolvência ideológica" entre vocês. Mas o que me admirou mesmo foram alguns [vários!] escritos que fez, e algumas opiniões sobre o partido. Não sei se você sabe, mas moro em Itapecerica da Serra, e, até onde sei, o diretório do PSOL aqui está totalmente desativado, sem atividade alguma. Queria saber como faço pra participar e etc. Já simpatizo com o partido há algum tempo -desde o pleito passado em que votei no Ivan - e estou no intuíto de somar de alguma forma. Queria, se possível, o teu e-mail para podermos desenvolver algo com mais qualidade e indicações de alguns contatos ou até mesmo marcarmos uma conversa.

    Mas já adianto que estou entrando em contato com o pessoal da cidade vizinha, Embú das Artes, onde o partido está consolidado e já agendei uma conversa com o ex-vereador Toninho e com o Juninho do Círculo Palmarino, você os conhece? Estou no caminho certo?

    Enfim, desculpe o desvio no assunto do tópico. Inclusive depois de me responder pode até apagá-lo.

    Abraço,


    Sofista.

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  2. Pô, Mauro, não precisa pedir desculpas não. Comentários no blogue são sempre bem-vindos, mesmo que aproveitem o gancho para tratar de outros assuntos!

    Veja lá no seu blogue as respostas.

    Abração,
    Max

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